Olho por olho, dente por dente | João Cerqueira
Eu tinha dezassete anos. Era uma rapariga comum: pertencia a uma família de classe média, andava no liceu, divertia-me com as amigas e namorava de vez quando. Tinha o cabelo e os olhos castanhos, o rosto oval, o nariz arrebitado com um sinal na ponta e uns lábios que pareciam estar sempre a sorrir. Uma vez disseram-me que eu era quase bonita. Quanto ao corpo, nada de especial: estatura média, seios pequenos, rabo redondo.
Nunca hei-de entender por que é que fui a escolhida.
O dia amanhecera nublado, mas um vento morno foi varrendo as nuvens até limpar completamente o céu. O sol parecia ter estado a acumular energia para então lançar raios sobre a terra. Eram dez horas quando entrei no liceu para o último dia de aulas.
Nos jardins parecia haver uma festa, com grupos de alunos em algazarra, pares de namorados debaixo das árvores e alguns miúdos a correr de um lado para o outro. Eu também queria usufruir daquela alegria, mas havia algo que me impedia. O teste de inglês correra-me mal e, provavelmente, iria chumbar.
Cheguei junto de duas amigas, Clara e Maria. Alheadas daquele bulício, enviavam mensagens pelo telemóvel.
– Ei, como vos correu o teste? – perguntei.
Apenas a Clara olhou para mim, surpreendida por aquela pergunta absurda.
– Qual teste? O de Inglês? Oh, deixa lá isso Ana.
Nesse momento, Maria coloca-me o ecrã do telemóvel diante da cara.
– Olha, é o meu namorado no chuveiro.
– Uauu – grita Clara.
E, como ambas se esquecessem da minha presença, comparando selfies de namorados, fui-me embora. Para escapar ao ruído e à barafunda, entrei no edifício. Ao caminhar pelos corredores vazios, comecei a pensar de novo teste de Inglês. Teria interpretado bem o poema de John Keats Why did I laugh tonight? No voice will tel? O poeta defende realmente que a morte é a maior recompensa da vida? Ou…
Estava absorta neste pensamento, quando ele apareceu. “Ana”, ouvi atrás de mim. Voltei-me e descobri Mr. Joe Harper, o temido professor de Inglês. Como sempre, vestia um fato escuro e uma camisa branca. Tinha o rosto barbeado, o cabelo puxado para trás e os olhos cinzentos fixados em mim.
– Temos de falar sobre o teu teste. Preciso que me esclareças algumas respostas… Se quiseres melhorar a nota, é claro.
– Claro que sim professor. Quer que vá ao seu gabinete?
Foi nessa altura que ele se aproximou e me pôs a mão no ombro. Estava a sorrir, algo muito raro na sua pessoa.
– Não, agora tenho de me ir embora. Olha, amanhã, às três da tarde, vai à minha casa e lá poderemos discutir melhor o teu teste. Sabes onde é, não sabes?
– Sim, sei, mas…, não vou incomodar?
– Já nos conhecemos há dois anos. Somos velhos amigos, Ana. Não faltes.
E foi-se embora.
Fui para casa felicíssima e comecei logo a estudar.
*
Mr. Harper vivia numa numa zona pouco habitada. Era uma casa antiga em tijolo com dois andares e uma garagem geminada. O portão estava aberto e entrei. Subi uma rampa de cimento e toquei à campainha. Ele abriu logo a porta. Estava vestido com uma roupa diferente dos fatos que habitualmente usava nas aulas. Tinha a barba por fazer e o cabelo sem pentear. Calçava uns chinelos. Nunca o tinha visto assim. E, pela primeira vez, senti o seu cheiro: uma mistura enjoativa de perfume e suor.
Parecia radiante com a minha chegada. As suas pupilas estavam dilatadas.
– Ana…, esse vestido fica-te muito bem. Entra, entra – disse, pondo de novo a mão no meu ombro.
Forcei um sorriso.
– Boa tarde professor…
Então, sem tirar a mão de mim, conduziu-me através de um corredor até uma sala onde havia uma mesa e duas cadeiras. Cheirava a mofo. O papel da parede tinha manchas. Do tecto pendia um fio de teia de aranha.
– Senta-te, minha querida – disse ele num tom de voz que não me agradou.
– Quanto ao meu teste professor…
– Tem calma, primeiro vamos tomar um chá. É assim que se recebem as pessoas de quem gostamos. Gostas de chá, não gostas, Ana?
Apeteceu-me dizer que não, que nunca tomava chá, nem café, mas não tive coragem de recusar a oferta. Pensei que ele poderia ofender-se e mandar-me embora sem discutir o meu teste. Por isso, quando ele apareceu com duas chávenas azuis num tabuleiro de bambu, aceitei a que me ofereceu.
A mão dele tremia quando a colocou à minha frente.
– É uma infusão de ervas indianas. Tem antioxidantes, é bom para a saúde. E já tem açúcar. Bebe, Ana, bebe – dizia, enquanto ia dando goladas na chávena dele.
Sem saber ao certo como proceder, fui-o imitando, sorvendo aquele líquido morno e enjoativo até a minha chávena ficar vazia.
Foi por essa altura que ele começou a deslizar os olhos pelo meu corpo, pondo a língua fora da boca e emitindo os sons estranhos. Quis ir-me embora, atirar-lhe com a chávena e sair dali a correr. Mas quando tentei levantar-me da cadeira, nenhum músculo me obedeceu. Depois comecei a ver tudo desfocado, senti as pálpebras fecharem-se e deixei cair o pescoço. A última coisa que ouvi foi «estás a sonhar, isto é um sonho». E não me lembro de mais nada.
*
Acordei num terreno baldio. Da cabeça aos pés, tudo me doía. Sentia um zumbido nos ouvidos. A boca estava seca. Com grande esforço, pus-me de gatas e consegui levantar-me. No céu havia uma lua cheia. Olhei para o relógio: já passava das nove horas. Dei alguns passos cambaleantes, sem ainda perceber o que estava ali a fazer, quando senti algo a escorrer-me pela coxa esquerda. Levei a mão à perna, aproximei-a dos olhos e vi que era sangue. Só então compreendi o que ele me tinha feito.
*
Quando cheguei a casa, a minha mãe esperava-me furiosa.
– Onde é que andaste? Olha para essa cara, estiveste com algum rapaz, não foi? Aposto que bebeste ou fumaste alguma droga? Nós matamo-nos a trabalhar para tu teres um bom futuro e tu queres dar cabo da tua vida? Vai já para o teu quarto. Amanhã continuamos esta conversa.
Não fui capaz de dizer nada, nem sequer de inventar uma desculpa. O meu pai estava na sala a ver televisão e ignorou-nos – nunca interferia nas nossas discussões. Passei pelo corredor sem o cumprimentar e fechei-me no quarto. Pensei que iria chorar, mas deixei-me cair na cama e fiquei a olhar para o tecto, como se ainda estivesse drogada. Só quando eles se deitaram é que entrei no chuveiro. Depois, agarrei num sabonete e não parei de me esfregar. Tinha de me livrar daquele cheiro enjoativo e de uma baba que sentia colada ao corpo, nem que arrancasse a pele.
*
Não fui capaz de contar nada a ninguém. Nem sequer à Clara e à Maria. Aquilo era tão vergonhoso, tão imundo, que não havia nenhuma palavra que o pudesse descrever – ainda que não me lembrasse do que acontecera. E talvez fosse esse desconhecimento do que realmente ele fizera comigo, dos pormenores e detalhes escabrosos que só podia imaginar, o que me impedia de contá-lo. Contá-lo a outra pessoa seria como ser de novo abusada. Por isso fiquei calada e guardei dentro de mim aquele monstro desconhecido que me começou a devorar.
Saía de casa o menos possível, desliguei o telemóvel e evitei os contactos nas redes sociais. Deixei de tomar banho, arranjar o cabelo e combinar as roupas. Comia apenas o suficiente para subsistir. De noite vinham as insónias e, quando finalmente adormecia, os pesadelos que me faziam acordar aos gritos. Uma manhã, ao ver uma barata na dispensa, fugi para o quarto.
Se os meus pais notaram alguma diferença no meu comportamento, não lhe deram muita importância. Por essa altura, a possibilidade de serem despedidos devido à crise era o único problema que existia para eles.
Duas semanas depois, as minhas amigas vieram visitar-me e não houve maneira de as impedir de entrar.
– Ana, que se passa contigo? Porque não sais de casa? – perguntou Clara, mal lhe abri a porta.
– Não me digas que estás apaixonada? – perguntou Maria.
– Ando apenas cansada, não se preocupem… – respondi.
– Ah, sabes que tiveste a melhor nota a inglês? E estavas tu tão preocupada com o teste – disse a Clara.
– Mas o profe foi-se embora. Para o ano, vais ter de te esforçar mais – disse a Maria.
Foi nesse momento que o efeito da droga desapareceu de vez e desatei a chorar.
Elas abraçaram-me, fizeram-me mais perguntas, garantiram que amanhã seria um novo dia, mas, vendo que nada resultava, calaram-se e foram-se embora.
Quando fiquei de novo sozinha, o monstro recomeçou a devorar-me. E, pela primeira vez, começaram a surgir-me ideias que nunca julguei possível ter. Veio-me então à memória o poema de Keats e, de repente, o significado dos seus versos passou a fazer sentido: a morte era a libertação do sofrimento, a morte dava sentido a uma vida miserável, a morte era uma bênção. Nessa noite, depois de mais um jantar onde quase nada comi e nem uma palavra troquei com os meus pais, fui à cozinha, abri uma gaveta e meti uma faca no bolso.
Sentada na cama, à luz do candeeiro de leitura, examinei a lâmina de aço. Aquele utensílio guardava uma inesperada beleza. Deslizei a ponta do dedo suavemente pelo fio até sentir o corte. Depois, como se me acariciasse, passei-a pelo pescoço, pelo peito, pela barriga, até chegar aos pêlos púbicos. Fios de sangue escorriam pelo meu corpo. Mas não sentia nada. Nenhuma dor. Então, bruscamente, cortei o pulso esquerdo. Voltei a ver tudo desfocado e a perder a força nos músculos. E ao cair sobre a mesa-de-cabeceira, provoquei um estrondo que fez levantar os meus pais.
Estive uma semana internada no hospital e passei a ser acompanhada por um psicólogo. Incapazes de entender o que acontecera e culpando-se um ao outro, os meus pais delegaram-lhe a responsabilidade de me curar. Também ele me fez imensas perguntas, falou de esperança, prometeu-me uma nova vida. Ouvi-o com atenção, mas não lhe contei nada.
Até que chegou um dia em que não aguentei mais. Tinha de partilhar com alguém o meu segredo. E qualquer pessoa serviria para meu confidente, desde que não me conhecesse. Só a um estranho me entregaria. E assim, tresloucada, saí para a rua. Estava um dia ventoso e eu era uma folha levada pelos ares. Caminhava sem saber para onde ia, perscrutando os rostos dos transeuntes, quando descubro uma igreja. Subitamente, compreendi que tinha encontrado o que procurava.
A igreja estava vazia. Era um local sombrio, sem uma pintura nem uma escultura a decorar as paredes. Havia apenas uma cruz de metal no altar. Senti frio. Caminhava por entre as duas filas de bancos, quando, como uma aparição, o padre surgiu do meu lado direito. Era um homem novo, ruivo e sardento. Os seus olhos azuis sorriam. Senti-me à vontade na sua presença. Apresentou-se como sendo o padre Eaton e percebeu que eu precisava de ajuda.
Contei-lhe tudo o que acontecera antes e depois. Sobre o que sucedeu na casa de Mr. Harper quando perdi os sentidos, não precisei de dizer nada, pois senti que ele sabia mais do que eu própria. Aos poucos, comecei a sentir-me melhor. O monstro que me devorava fora exposto e, por agora, parecia ter recolhido as garras. Até que o padre disse algo que jamais esperaria. Uma palavra que me violou: perdoar. Porque – explicou – era o ódio que me estava a destruir e só através da compaixão podia ser de novo feliz.
Mas eu não fora ali para perdoar ninguém. Como podia perdoar aquilo? Como podia perdoar a alguém que fugira sem se arrepender. Era Mr. Harper quem tinha de me pedir perdão, de joelhos, ciliciando as costas até jorrar sangue. E nem assim eu o perdoaria.
O padre, vendo a desilusão no meu rosto, tentou pegar-me na mão. Como se fosse levar uma ferroada, afastei-a recusando o contacto físico. O padre respirou fundo e ficou um momento em silêncio. Contou-me, então, a história de José que perdoara aos irmãos terem-no vendido aos Ismaelitas que depois o levaram para o Egipto onde se tornou escravo de Potifar, um general do exército. Uma história terrível, mas bela – dizia ele – que mostrava como José, depois de tantos anos de sofrimento, fora misericordioso quando recuperara a liberdade. E de seguida, aconselhou-me a ler na Bíblia outros exemplos de perdão que nos convidavam a descobrir como só o amor nos podia salvar.
Em casa, segui parte do conselho do padre e fui fazer pesquisas na net sobre a Bíblia. Mas, em vez de procurar exemplos de perdão, busquei episódios de vingança. E havia muitos: o Deus do Antigo Testamento nunca perdoava aos pecadores: lançava pragas, destruía cidades e tinha até afogado o mundo. Por fim, sentia-me próxima da religião. Era de um Deus assim, forte e implacável, que eu precisava. José podia ter perdoado, Jesus também, mas, afinal, quem eram eles ao lado do Criador? Contudo, foi no Êxodo que encontrei o que procurava. Em vez da história deprimente de José, esse tipo sem carácter, a poesia da vingança:
“olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé”
“queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe”.
Sim, era esta a única forma de se fazer justiça.
Nessa noite dormi tranquila.
*
Como não tinha dinheiro para contratar um detective privado, restou-me procurar no Google o nome Joe Harper. Encontrei centenas de resultados, que diminuíam para dezenas quando refinava a busca com a palavra professor – mas nenhum era ele. Então, após ter feito dezoito anos, fui à sua procura. Estava decidida a dar a volta ao mundo até o encontrar. Que outro plano poderia ter?
Não deixei um bilhete aos meus pais, nem me despedi de Clara e Maria. Nada me ligava a nenhum ser humano. Excepto, claro, a corrente que me prendia a Mr. Harper. Contudo, agora havia uma relação diferente com o monstro que dantes me devorava. Ele já não me fazia mal. Pelo contrário, dava-me forças e, por estranho que pareça, tornara-se uma espécie de aliado – passei então a chamar-lhe o ‘’meu dragão’’.
Durante dois anos vagueei pelo território, fazendo perguntas e espreitando à porta das escolas. Para sobreviver, aceitei qualquer trabalho, dormi onde calhou e, por vezes, roubei. Contudo, o tempo passava e nenhuma pista aparecia.
Uma manhã cheguei a uma cidade do Sul e passei junto a um bar. O edifício tinha um vão envidraçado que permitia ver o interior. Entrei. Um balcão envernizado atravessava o espaço até se unir a uma parede de tijolo. Cinco candeeiros em forma de globo pendiam do tecto. As mesas e as cadeiras estavam arrumadas num canto. Havia um silêncio de igreja.
Um negro que devia pesar mais de cem quilos avançou para mim com uma vassoura na mão.
– Procuro emprego – disse-lhe.
– Como te chamas?
– Ana…
– Arthur, sou o dono desta espelunca.
Depois observou-me durante alguns segundos, franzindo umas sobrancelhas grossas. Os donos dos bares estão habituados a detectar o perfil de quem lhes pode arranjar problemas. Não sei o que pensou a meu respeito, mas também me deve ter achado quase bonita.
– Toma, podes começar – e entregou-me a vassoura.
Embora ninguém tivesse ouvido falar de Mr. Harper naquela terra, sentia-me cansada e decidi ficar por algum tempo. Talvez ali conseguisse juntar dinheiro para contratar um detective.
Uma noite estava a servir bebidas e tudo parecia normal. Ouviam-se conversas animadas e choques de copos em brindes. Algumas pessoas dançavam ao som da juke box, outras atiravam dardos contra um alvo. Volta e meia o patrão passava um pano no balcão como se estivesse a polir uma jóia.
Então uma rapariga loira, vestida com uma saia azul e uma blusa amarela, avançou para o meio do recinto e começou a dançar. Fechara os olhos e meneava-se com graciosidade. Os seus braços pareciam flutuar como os tentáculos de uma medusa. Por vezes outros clientes chocavam contra ela, sem que tal a perturbasse. Apenas o seu corpo se encontrava lá.
De repente, um homem de meia-idade levantou-se de uma mesa e caminhou na direcção dela. As luzes dos candeeiros faziam brilhar a sua cabeça calva. Quando chegou junto da rapariga começou também a dançar. Esteve assim alguns segundos, dando passos ridículos, enquanto a olhava fixamente. Mas ela não abria os olhos, pondo nos lábios o sorriso de um prazer só de si conhecido. Até que ele lhe disse qualquer coisa ao ouvido. Ela levantou um pouco as pálpebras e afastou-se alguns metros, continuando a dançar. O homem foi atrás dela e agarrou-a por um braço. A rapariga tentou soltar-se, mas não conseguiu. No seu olhar havia agora pânico.
Nessa altura o meu dragão lançou fogo pela boca. Peguei na primeira garrafa que encontrei, corri na direcção do homem e bati-lhe na cabeça com quanta força tinha. Ele tombou no soalho e eu dei-lhe vários pontapés na cara. Quando me preparava para me lançar sobre aquela face ensanguentada para lhe furar os olhos com as unhas, alguém me agarrou.
Não houve queixa na polícia, mas fui despedida. O patrão, porém, pediu-me desculpa por me mandar embora e pagou-me mais três meses de salário. Não o fez por bondade, mas porque me temia. Aquele homem corpulento, que já tantas lutas devia ter presenciado no seu bar, vira o dragão.
Com o dinheiro recebido, contratei um detective chamado Jack Sock – um polícia reformado. No seu escritório havia diplomas nas paredes e uma ventoinha no tecto. Disse-lhe que andava à procura de um familiar e contei-lhe uma história inventada. Mr. Sock ora me olhava com os olhos arregalados, como se tivesse percebido a minha mentira, ora cerrava as pálpebras, parecendo estar a reflectir num problema complexo. De vez em quando, tomava notas num caderno. No fim, ficara a saber o aspecto físico e a idade de Mr. Harper, assim como o ano, a cidade e o liceu onde leccionara. Se fosse bom detective, tinha material suficiente para o encontrar.
Uma semana depois, a meio de uma manhã cinzenta, o telemóvel tocou. Quase o deixei cair ao chão quando vi escrito no visor ‘’Sock’’. O meu coração batia descontrolado.
– Sim, mister Sock…
– Encontrei-o. Está a cinco horas daqui. Estou à sua espera.
E terminou a chamada.
Dali a quinze minutos, entrei a correr no escritório e abri a porta sem bater.
– Onde é que ele está? – gritei.
Jack Sock não se perturbou. Pegou numa pasta, levantou-se e avançou na minha direcção.
– Tem aqui tudo o que precisa para o encontrar. Endereço, telefone, número de bilhete de identidade. Só não existem fotografias, nem um local de trabalho porque ele teve um AVC há uns meses atrás e ficou inválido. Raramente sai de casa.
Quando me preparava para lhe pagar os seus serviços, ele volta a falar.
– Ah, vai encontrar a fotografia de uma mulher…
– Está casado? – interrompi-o.
– Não, é uma empregada que cuida dele. Chama-se Rosa e trabalha até às três da tarde. Tenha cuidado…
Depois, ele fixou os seus olhos nos meus. Ficámos os dois em silêncio e não foi preciso dizer mais nada. Só se ouvia a ventoinha a girar sobre as nossas cabeças. E nesse momento senti que tinha voltado a criar um laço com um ser humano. Então, num impulso, abracei-o.
Não fui capaz de abrir logo a pasta. Apertava-a como se fosse um frasco onde tinha preso um insecto. Ao caminhar pela rua, soltei alguns gritos. As pessoas olhavam-me de soslaio, sem que isso me importasse. A certa altura entrei num parque e sentei-me num banco. Preparava-me para abri-la, quando uma barata passou perto; levantei o pé, mas acabei por deixá-la ir. Só então comecei a ler as informações do detective. E de repente tudo se tornou claro: Deus tinha colocado Mr. Harper à minha mercê. Cerrei os punhos e bradei para o céu.
– Olho por olho, dente por dente.
Na madrugada seguinte, meti-me numa camioneta e, pelo meio-dia, cheguei ao meu destino. Encontrei uma cidade envolta em neblina. A luz filtrada pelo vapor de água produzia uma claridade prateada. Os edifícios, os carros, as árvores, tudo parecia algures entre o estado sólido e o gasoso. Eu própria me dissolvia na neblina enquanto caminhava pelas ruas.
Como a terra era pequena, não foi difícil encontrar a sua morada. Era uma casa de madeira pintada de branco, com telhado preto, um alpendre sustentado por duas colunas e um jardim protegido por uma sebe. Nas paredes havia tábuas partidas e a relva já não era cortada há algum tempo. Pássaros tinham feito ninhos nas beiras do telhado.
Os primeiros raios de sol começavam a romper a neblina.
Por volta das três horas, a porta abriu-se e de lá saiu uma mulher morena com cabelos negros. Não precisei de olhar para fotografia para confirmar que era Rosa. Trazia um saco de lixo nas mãos e passou por mim de cabeça baixa.
Tinha o caminho livre.
Abri a cancela, avancei pela relva e toquei à campainha. Passados alguns segundos, ouvi uma voz que não reconheci. Uma voz fraca e entaramelada.
– Queem éee?
– Sou a Rosa… – disse baixinho.
– Roosa…
– Sim…
Escutei uns ruídos estranhos, onde se misturava o toque na madeira e o ranger do metal, e percebi que ele estava a tentar abrir a porta. Subitamente, o silêncio. E a porta abriu-se. Vi um velho de cabelos brancos, com um olho fechado e a boca torta. A cabeça pendia-lhe para o lado direito, o braço esquerdo estava inerte e os dedos da mão retorcidos como garras. Dos lábios escorria-lhe um fio de baba. Vestia um pijama com nódoas e calçava pantufas. Aquela criatura só vagamente se parecia com Mr. Harper.
Afastei-o, entrei e fechei a porta. Ele olhava-me desconcertado. Não fazia a menor ideia de quem eu era ou do que estava a acontecer. Deve ter julgado que era um assalto.
– Na.. não tenho di… dinheiro…
Resisti a dar-lhe um bofetão. Antes, obrigá-lo-ia a recordar o que fizera.
– Why did I laugh tonight? No voice will tell? Lembra-se deste poema, Mr. Harper? Lembra-se da aluna que convidou para ir a sua casa analisar o teste de Inglês? Lembra-se da Ana? Lembra-se de me ter drogado e violado, seu filho da puta?
E aproximei a minha cara da dele até sentir o seu hálito pútrido. Ele ficou paralisado. Parecia uma figura de cera de uma galeria de horrores. Depois torceu ainda mais a sua boca deformada e revirou o único olho aberto.
– Aana… Aana… – balbuciava.
– Sim, sou eu mesma. Isto não é um sonho. E agora vai pagar pelo que me fez.
– Aaana…
E não parecia capaz de dizer mais nada.
Levei então a mão ao bolso direito, agarrei na faca e apontei-lha à cara. Nesse instante, ele começa a tremer e urina pelas pernas abaixo. Um espasmo sacode-o e fá-lo tombar no soalho. Deitado de barriga, emitia uns gemidos e soltava espuma pela boca. A mão direita arranhava desesperada a madeira, como um náufrago a tentar agarrar uma tábua. E os gemidos transformaram-se em guinchos pavorosos. Aquela criatura miserável lutava pela vida. De súbito, consegue voltar o pescoço e crava-me o seu olho implorante.
– Aaana…
Quase vomitei.
Voltei-lhe as costas, abri a porta e comecei a correr. No jardim tropecei na relva, caí, levantei-me e choquei contra a cancela. Nesse momento, detive-me e olhei para trás. A casa brilhava ao sol; acima do telhado, um avião riscava o céu. Fiquei assim alguns segundos, especada. Então levei a mão ao bolso esquerdo e peguei no telemóvel.
Quando comecei a ouvir a sirene da ambulância, veio-me à memória a história de José. E só nesse instante percebi que tinha voltado a ser uma mulher livre.
João Cerqueira
João Cerqueira has a PhD in History of Art from the University of Oporto. He is the author of eight books. Blame it on to much freedom, The Tragedy of Fidel Castro, Devil’s Observations, Maria Pia: Queen and Woman, José de Guimarães (published in China by the Today Art Museum), José de Guimarães: Public Art.
The Tragedy of Fidel Castro won the USA Best Book Awards 2013, the Beverly Hills Book Awards 2014, the Global Ebook Awards 2014, was finalist for the Montaigne Medal 2014 (Eric Offer Awards) and for The Wishing Shelf Independent Book Awards 2014 and was considered by ForewordReviews the third best translation published in 2012 in the United States.
The second coming of Jesus (A segunda vinda de Cristo à Terra) won the silver medal in the 2015 Latino Book Award and was considered by the unheard-voice.blogspot one of the best books published in 2015.
The short storie A house in Europe won the 2015 Speakando European Literary Contest, received the bronze medal in the Ebook Me Up Short Story Competition 2015 and an honorable mention in the Glimmer Train July 2015 Very Short Fiction Award.
His works are published in Contemporary Literary Review India, The Adirondack Review, Ragazine, Berfrois, Cleaver Magazine, Bright Lights Film, Modern Times Magazine, Toad Suck Review, Foliate Oak Literary Magazine, Hypertext Magazine, Danse Macabre, Rapid River Magazine, Open Pen Magazine, Queen Mob’s Tea House, The Liberator Magazine, Narrator International, The Transnational, BoldType Magazine, Saturday Night Reader, All Right Magazine, South Asia Mail.
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